segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Encapar a realidade

O regresso às aulas é sempre um momento importante quando se anda na escola. Durante as últimas semanas das férias, que duravam apenas uns 3 meses, já só se pensava em ir buscar os livros da escola à papelaria, 2 ou 3 rolos de papel autocolante, e ENCAPAR os livros. Este era o momento alto da rentrée, a par de escolher a mochila nova (de 2 em 2 anos, que não é para estragar logo tudo!). O encapanço tinha que ficar perfeito. Esse processo, quase poético, passava por:

- Escolher um dia para encapar os livros. Sim, porque era uma actividade demasiado importante para ser "quando for". Não, vai ser no dia marcado, escolhido criteriosamente no calendário. A menos que algum amigo viesse chamar para ir jogar à bola na rua, claro, não exageremos.

- Desocupar a mesa maior da casa. Normalmente era a mesa de jantar da sala, que tinha uma fila de  cassettes VHS a meio, empinadas, a fazer de rede para jogar ping pong. Estes jogos acabavam sempre à bulha porque as cassettes caíam e era por onde a bola passava mais cedo ou mais tarde. E depois decidir se tinha sido por cima da rede ou não era impossível, na ausência de um juiz oficial do jogo. Normalmente o juiz aparecia por causa da guerra que se seguia e a discussão acabava ali, com uma palmada em cada um.

- Posicionar na mesa todo o material necessário para a execução da tarefa. O monte dos livros novos, naturalmente. O papel autocolante em rolo, com aquele quadriculado azul em fundo branco que cobria a face com cola e que dava um jeitão para fazer os cortes; eu tenho para mim que o papel tinha esse quadriculado propositadamente. Uma tesoura, que era a tesoura de costura da mãe, que era maior e cortava melhor. E por último, mas não menos importante, uma régua. Até certa altura era uma de 20 cm, não havia outra, mas o aparecimento da régua de 50 cm de EVT (Educação Visual e Tecnológica) foi o equivalente à revolução industrial  no encapanço de livros.

- Abrir uma porção generosa do rolo de papel autocolante e segurar a ponta com um dos livros. Colocar um livro no centro do papel, deixando 2 a 3 cm de margem a partir do limite do papel, dobrar o papel por cima do livro (porque o papel tem que cobrir as duas capas, não se esqueçam!) e cortar do outro lado deixando novamente 2 a 3 cm do bordo do livro. Primeiro fazer um pequeno corte no sítio certo, para marcar, e depois tirar o livro, virar o papel ao contrário e cortar tudo, deixando deslizar a tesoura ao longo da linha azul (do quadriculado). Escusado será dizer que a meio o papel enrolava-se todo por cima da tesoura e o corte parecia mais o circuiro de F1 do Mónaco.

- A partir daqui é que era preciso mãozinhas. Para começar, pousar o livro de lado com o bordo "solto" para nós (não a lombada, o bordo das páginas soltas), descolar uma faixa do papel autocolante (sem pôr os dedões no que ia ficar por cima do livro, para nõa ficar logo tudo marcado!) e colar essa faixa estreita de papel autocolando o mais paralelo possível ao bordo do livro (dependendo do quanto o corte parecia um circuito de corridas, nem sempre era fácil).

- Ponto crítico. Com uma mão puxar o papel quadriculado atrás para ir soltando a película autocolante e com a outra empurrar o autocolante para baixo e para a frente, utilizando a régua para evitar que se formassem bolhas de ar. Já estão a ver que a régua de 20 cm muitas vezes era mais pequena que a largura do livro, o que exigia alguma perícia para ir colando tudo direitinho na largura toda do livro. Se ficava alguma bolha era o caos. Voltar a descolar para sair o ar muitas vezes não dava porque a bolha já tinha ficado muito atrás, e descolar e voltar a colar ficava tudo marcado com um risco esbranquiçado de cola no sítio do desastre. Às vezes, se fosse suficientementepróximo da "frente de batalha" (que é como quem diz, do limite do papel já descolado) dava para ir empurrando a bolha de ar com a régua até ela sair (alívio!). Se fosse demasiado tarde, a alternativa era fazer um furinho minúsculo na bolha para deixar sair o ar. Mas se o furo fosse maior que minúsculo (como acontecia utilizando o bico da tesoura em vez de um alfinete) ficava uma cratera pequenina mas saliente no papel autocolante. De tal forma que os livros de quem não tinha muito jeito para evitar as bolhas pareciam um ferrero rocher. Mas o pior de tudo era quando se fazia uma gelha e ela colava. Horrível. As maiores davam mesmo vontade de pedir aos pais para comprar outro livro novo, igual, só para começar de novo. Da primeira vez achei que aquela resposta "sim filho, vou já lá amanhã" era verdadeira e deixei esse livro para o dia seguinte (ou por isso ou porque alguém veio chamar para ir jogar à bola, já não me lembro bem). Depois percebi que a única solução era nunca mostrar essa tragédia a ninguém, deixando portanto esse(s) livro(s) em casa. Como consequência, ou acumulava faltas de material ou não estudava por esse(s) livro(s). E esta é, certamente, uma das primeiras capacidades que distinguem os bons dos maus alunos. Eu tenho a certeza que há uma relação entre a habilidade de encapanço e as notas. Eu hoje podia ser um Einstein, se não tivesse feito aquelas gelhas no livro de Ciências Físico-Químicas do 8º ano. A determinada altura, vindo sei lá de onde, surgiu a ideia de que puxar o quadriculado todo de uma vez de forma a colar practicamente a face inteira do livro de uma gesto funcionava bem. Nem vou comentar...! Chegando à lombada, colá-la, virar o livro e repetir, até ao fim do livro. Mas não pensem que chegar ao fim sem bolhas e gelhas era garantia de sucesso fácil. Se as margens foseem muito grandes, as de cima dobravam com o peso e colavam-se às debaixo. Isto não era crítico ao ponto de estragar o trabalaho, porque as margens do papel autocolante ficavam para dentro, mas dava algum trabalho conseguir descolar as margens e mantê-las separadas. Foi para isso que o criador nos deu 10 dedos, foi aí que percebi.

- Depois das faces coladas vinha a finalização, cortar uma cunha no papel autocolante junto aos cantos das faces do livro e dobrar as margens para dentro. O corte tinha que ser exactamente a partir dos cantos das capas, para ficar o mínimo de bordo da capa descoberto. A mesma coisa junto à lombada, lembrando que para virar a margem junto à lombada tinha que se levantar as folhas, correndo o risco de puxá-las de mais e estragar a colagem das folhas na lombada da capa.

No fim do trabalho feito era um orgulho... até jantava 2 vezes, para encher o peito (ou porque tinha andado a tarde toda a jogar à bola, também é possível). Quem encapava os livros em condições estava pronto para a escola dos livros e para a escola da vida. Que no caso de quem andou na escola da Pedrulha eram as duas a mesma. Eu considero que sempre passei com distinção nesta tarefa, ano após ano. E é com bastante tristeza que dou por mim um dia destes a ouvir no rádio uma publicidade a anunciar um serviço (pago, claro!) de encapanço de livros numa papelaria. As lágrimas até me vieram aos olhos. Que Mundo é este? É isto que queremos para as nossas crianças? Que cresçam sem saber encapar os próprios livros da escola? Sem saber desfazer bolhas? Sem aguentar a pressão de lidar com as gelhas do livro de Matemática. E ainda me querem fazer acreditar que o COVID é que é perigoso? Eu acho-lhe uma graça...!